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a vida me fez arte

  • Foto do escritor: Luiz Felipe
    Luiz Felipe
  • 1 de mar. de 2023
  • 5 min de leitura

Estou me tornando cada vez mais velha. Minhas mãos são secas e já brotam nelas aquelas manchinhas, de melanina, típicas da velhice. Meus olhos estão levemente inchados, juntando sulcos e formando bolsas, na pálpebra inferior enquanto que as superiores estão a cada dia mais caídas, dando-me um ar de cansada, mesmo que eu não esteja assim tão exausta. Meu pescoço, arado, já se divide em três linhas retas, marcas e a testa faz três dif


erentes estradas, tal qual o pescoço. Estradas de rugas.



Não se exatamente quando foi, mas eu parei. Parei de me importar com o batom. Antes, eu gostava de usar um vermelho, quando saia, ou até um rosinha mais claro, quando ia a um passeio diurno. Foi assim, do nada e muito de repente. Não foi aos poucos, sei que teve um dia em que me levantei, passei aquele batom e não me senti confortável. Meus lábios, já enrugados e secos. Fui com a mão trêmula, lenta e cuidadosamente para não borrar, e por mais que tenha me dedicado, não gostei do que vi no espelho refletido. Ficavam marcas, que não eram preenchidas de maneira nenhuma. Estavam rachados meus os meus lábios, mas não estavam desidratados, estavam era velhos e murchando.

Senti-me como uma fruta velha, dia a pós dia apodrecendo, mas então olhei pra uma casca de banana que havia jogado fora no vasinho da minha camélia. Já estava preta, decompondo-se, mas logo ia se tornar parte daquele solo e servir de vida para a camélia que logo já floresceria. Lembrei de quando florescia ainda, na minha juventude. Era tão viva, gostava de ler, passear com a cadela e vestia-me sempre florida, rodada e leve. Sorria sempre melíflua e meus gestos, redondos, contornavam as formas no ar. Lembro-me daquela tarde em que conheci Roberto. Ele não passava de um bon vivant e eu apenas uma colegial, ainda amadurecendo, cheia de flores nos cabelos, escorrendo, cercada de borboletas, como se eu fosse sempre primavera. Ele me trouxe outras flores, que faltavam ao meu jardim: camélias; e depois me convidou pra um chá. Falamos sobre vinho, queijo, história em quadrinhos e discos novos de uma banda que me esqueci qual era, e que se não fosse por ele jamais teria falar sobre. Eu estava no auge. No auge da minha décima sexta primavera. A pele macia, num toque suave igual'a um pêssego; os cabelos esvoaçantes, sempre com o vento dançando e tinha tanta energia. Que energia! Gostava de ir ao clube todos os sábados e domingos com papai. Nadávamos, jogávamos tênis e vôlei e depois ainda tinha forças para ler Virgínia Wolf ou Jane Austen, estudá-las.

Me casei no verão de 1959, em Paris. A cidade estava iluminada e eu tinha apenas dezoito anos. Ricardo e eu fomos pra Veneza, numa beleza de lua de mel. Dois meses depois reencontrei numa livraria, no Rio, Roberto. Ele sorriu-me e eu o convidei pra um café enquanto observávamos os casais se divertindo pelo calçadão, apesar do calor. Ele me olhou as mãos e disse que eram tão macias e alvas. Bem agora percebo que estão mais enrijecidas, frágeis e enquanto a parte de cima é macia, fina na verdade, rala de carne; a de baixo é dura, fria e calejada. Suspiros esquecidos, num encontro do ontem com o hoje, tornam-se agora crus, esmaecidos. Foi assim suspirando, ao sol ardendo no nas costas, ouvindo o mar de Itapuã que tomou-me pela primeira vez. Sim, assim no meio da praia, sem nenhum pudor e sentindo-me totalmente jovem e esbelta. Desejada como uma romã, como água no quente e seco deserto e foi ali que começou o meu cansaço. Nove meses depois chegou Cecília e nos dias que se seguiram vieram Alice, Sophia e Miguel. Não tive folga, não tive mais férias e fui lentamente tendo primaveras cada vez mais curtas, dias cada vez mais lentos e predominou sobre mim o inverno. Nevou-me quando Roberto desapareceu, nevou-me quando Ricardo abandonou-me ainda com Miguel de colo para engraçar-se com uma mulher bem mais jovem, cheia de flores nos dentes. Enfraqueci como rama seca. Esqueceram-me de regar e fui me transformando num cacto, lentamente num cacto.

Outro dia, Lídia veio aqui em casa e começou a dizer que eu estava muito descuidada, meio desleixada. Disse que todas as irmãs andam comentando isso. Dei de ombros. Pouco me importo com o que falam de mim, sobre minha aparência. Lídia estava toda colorida, vestindo-se como se estivesse indo pra um casamento. O rosto? Esticado mais uma vez. Quase não se tem expressões. Parece que sorri, levemente, a todo tempo e a testa é sempre maciça, reta. Depois que ela se foi olhei pra mim mesmo no espelho fosco do banheiro. A cara cheia de rugas, os pés de galinha, o bigode chinês. Estas linhas, que me enfeiam, na verdade, elas possuem histórias. É verdade, nem todas belas, mas esta por exemplo, próximas ao canto da boca, elas falam de sorrisos. Nunca contei quantos sorrisos eu tive na vida, mas elas são marcas da minha felicidade, dos momentos de alegria. Quando Cecília nasceu, dei um sorriso lindo, eu me lembro, Gargalhei na verdade. Não podia acreditar naquele pedacinho de gente nos meus braços, depois de tanta dor e suadouro. Esse sorriso está eternizado aqui, nessa linhas que pendem secas para baixo.

Acho que aceitei a minha condição, permito-me ser velha e quero continuar envelhecendo. Muitos dizem que estou desleixada que não tenho vaidade, mas prefiro que seja assim. E quando olho para minhas mãos cheias de marcas e rugas me sinto orgulhosa e respiro pesadamente pensando. É verdade que há muito minha cara não vê uma gota de creme, não vê sinal de renovação. Laís gasta muito dinheiro do marido comprando promessas milagrosas que juram restaurar lhe a pele. Passa no rosto argila, café, ácidos e laser e no final das contas no mês seguinte terá que fazer tudo de novo, e gastar ainda mais dinheiro. Em setembro o laser era 500 reais, ontem me ligou dizendo que pagou 700. Cada vez mais dinheiro, enlouquecida tentando evitar a todo custo o inevitável. Reclama de Lídia, que está superficial, que prefere algo mais natural, mas pelo menos Lídia gasta de contas em contas de sete em sete meses o que ela gasta todo mês. Acho tudo uma bobagem, talvez tenha envelhecido demais ou talvez eu tenha sempre sido uma boa velha. Nasci toda enrugada dizia mamãe, acho que apenas voltei às origens.

Desenhos no meu rosto, existem desenhos no meu rosto e que possuem muitos significados. Eles expressam, sem nenhuma técnica, mas com muito sentimento, a minha tristeza, minha alegria, minha raiva. Toco meu rosto e percebo-o, vou contornando cada traço, os originais e os adquiridos. Sou uma memória ambulante, uma memória que caminha e que tem vida e por isso me defino arte. Me defino arte, não artista. Nunca tive aptidão pra nenhuma arte. Não canto bem, não sei desenhar, sou péssima pintando pois tenho mãos trêmulas. Tenho um corpo meio curvo, meio desengonçado e agora ainda mais, não sirvo pra dançar ou performar. Artista de mim foi a vida e quem sabe o destino. A vida quem me fez uma arte. Pintou-me com suas mãos e segue moldando-me a cada dia que passa, até o dia que o destino preparar-me a hora de findar. Não quero ser enterrada num túmulo de pedra, quero ser enterrada no chão, no solo e ser comida pela terra. Quero servir de adubo tal qual esta casca de banana ali naquele serve está servindo; cumprindo seu papel. Hei de querer cumprir o meu também.



 
 
 

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